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Para quem está acostumado a cuidar da saúde do outro, se ver do outro lado, como quem precisa desse cuidado, é, para dizer o mínimo, estranho e doloroso. Mas pode ser, também, transformador. Uma das categorias mais expostas à Covid-19, profissionais da saúde enfrentam há um ano um esgotamento físico e mental sem precedentes e um medo constante por si e pelos seus.
Sem possibilidade de trabalhar de casa, muitos, no exercício da profissão, adoecem e chegam a desenvolver quadros graves da doença, inclusive, evoluindo para óbito. Entretanto, uma capacidade em especial se fortalece entre os que conseguem se recuperar: a de empatia.
“É quase impossível passar por uma situação dessa e não mudar. Eu me vi do outro lado e, hoje, tento preservar mais o paciente, trazer mais conforto. Entendo mais a dor dele, entendo mais a dor do acompanhante”, narra Luiz César Viana Brasileiro, 38, que atua como enfermeiro na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Canindezinho, em Fortaleza.
César foi diagnosticado com a Covid-19 em março do ano passado, pouco antes do pico da primeira onda da pandemia, quando se sabia pouco sobre a doença e os protocolos de proteção dos profissionais que trabalhavam na linha de frente ainda não eram tão rigorosos.
Inicialmente, lembra o enfermeiro, ele só sentiu dor de cabeça e na lombar, o que o fez confundir a infecção com dengue, que costuma causar sintomas semelhantes. “Com três dias, vieram cansaço e falta de ar. Rapidamente fui internado e, com dois dias, intubado”, conta. Mesmo após receber alta e ir para casa, a Covid-19 perseguiu César de outras maneiras. “Não conseguia dormir, tinha alucinações. O fator psicológico abalou bastante”.
Depois de muito esforço e terapia com psicólogo e psiquiatra para se recuperar mentalmente, recentemente, em março, César perdeu o irmão para a pandemia. “Minha família toda pegou de forma grave. No caso eu, meu irmão, que veio a óbito, e minha mãe, só que ela não chegou a ser intubada. Ficou no oxigênio, internada uma semana”. Ela teve alta alguns dias atrás.
A dor da experiência pessoal e de não poder fazer muito pela própria família fez o enfermeiro a enxergar o próprio ofício de outra forma.
“Às vezes, você está tão focado em atender o paciente que despreza a dor do acompanhante. Um paciente crítico, que chega com cansaço, o acompanhante quer porque quer que faça tudo logo, de uma vez. Hoje, meu entendimento é que ali é uma pessoa que ele ama e que ele quer que salvem”, compreende.
A emergencista Patrícia Lopes, 31, teve Covid-19 exatamente no pico da primeira onda da pandemia, em maio de 2020, num dos piores momentos para se conseguir assistência hospitalar. “Na época, a gente não tinha leito, ventilador, ponto de oxigênio”, lembra.
Isolada num quarto em casa, recebendo notícias de colegas de trabalho sendo internados e do avanço da infecção pelo mundo, a médica acompanhou a evolução da própria doença com equipamentos que tinha e enfrentou sozinha, por 14 dias, uma constante falta de ar. “O medo era ficar mais grave e ser intubada”, quando ela sabia que a rede de saúde já estava saturada.
“Me enxergar do lado oposto me deu uma visão diferente. A gente entende que os pacientes chegam à emergência com falta de ar, claro, mas eles chegam muito ansiosos porque é uma doença que causa muito medo. Imagina você não conseguir respirar e saber que existe a possibilidade de chegar a um hospital e não ter oxigênio. É muito desesperador. Essa ansiedade piora muito a falta de ar e eu senti isso na pele”, compartilha a médica.
Ainda hoje, Patrícia enfrenta um estresse pós-traumático. “Você estar ali, todo paramentado, atendendo pessoas com a mesma queixa de falta de ar que você sentiu pouco tempo atrás e que causou tanto medo me gerava muita ansiedade. Até hoje trabalho isso”.
Edeiza Ataliba Bastos, 36, estava grávida de sete meses da Marianna quando foi internada às pressas no último mês de fevereiro sentindo falta de ar, seis dias após observar os primeiros sintomas da Covid-19. Quem primeiro positivou para a doença em casa foi o marido da enfermeira, em seguida ela e, depois, sua primogênita de um ano e meio de idade.
Quando se internou e soube que teria de fazer uma cesárea antecipada para salvar a própria vida e a da filha, conta Edeiza, “o que vinha à cabeça era o medo de morrer. Porque a todo momento eu era consciente da gravidade do meu quadro”, relata.
Tendo passado um mês internada, depois de ser submetida a um parto de urgência e de enfrentar intubação e traqueostomia, a profissional agradece pelo empenho de cada um dos colegas de labuta que acompanhou sua jornada no hospital. “Tive uma assistência muito boa. Todo mundo que passou pelo meu caminho teve um papel fundamental pra que eu me recuperasse”, reconhece.
Hoje, se recuperando física e emocionalmente da doença, com a filha saudável no colo e ao lado da família, Edeiza compartilha:
“Só sabe da gravidade [da Covid-19] quem passa. E minha perspectiva depois de enfrentar é que cada vez mais devemos tratar nossos pacientes bem e prezar pela vida, fazer tudo o que estiver ao nosso alcance pra tentar salvar quem a gente puder, porque todo mundo é o amor de alguém”.
No Ceará, do início da pandemia até as 11h48 do último sábado (27), 21,2 mil profissionais da saúde foram infectados pelo novo coronavírus, segundo o IntegraSUS. Desses, 54 morreram, a maioria (46,2%) em Fortaleza, onde também se concentra a maior parte dos casos confirmados (37,4%).
Dos profissionais mais afetados, estão técnicos ou auxiliares de enfermagem, médicos, enfermeiros, agentes comunitários de saúde, condutores de ambulâncias, dentre outros.